- Você está morando por aqui?
- Na casa do papai.
Na casa do papai! Ele sacudiu a cabeça, fingiu que arrumava alguma coisa dentro do seu carrinho – enlatados, bolachas, muitas garrafas -, tudo para ela não ver que ele estava muito emocionado. Soubera da morte do ex-sogro, mas não se animara a ir ao enterro. Fora logo depois da separação, ele não tivera coragem de ir dar condolências formais à mulher que, uma semana antes, ele chamara de vaca. Como era mesmo que ele tinha dito? “Tu és uma vaca sem coração!” Ela não tinha nada de vaca, era uma mulher esbelta, mas não lhe ocorrera outro insulto. Fora a última palavra que lhe dissera. E ela o chamara de farsante. Achou melhor não perguntar pela mãe dela.
- E você? – perguntou ela, ainda sorrindo.
Continuava bonita.
- Tenho um apartamento aqui perto.
Fizera bem em não ir ao enterro do velho. Melhor que o primeiro reencontro fosse assim, informal, num supermercado, à noite. O que é que ela estaria fazendo ali àquela hora?
- Você sempre faz compras de madrugada?
Meu Deus, pensou, será que ela vai tomar a pergunta como ironia? Esse tinha sido um dos problemas do casamento, ele nunca sabia como ela ia interpretar o que ele dizia. Por isso, ele a chamara de vaca no fim. Vaca não deixava dúvidas de que ele a desprezava.
- Não, não. É que estou com uns amigos lá em casa, resolvemos fazer alguma coisa para comer e não tinha nada em casa.
- Curioso, eu também tenho gente lá em casa e vim comprar bebidas, patê, essas coisas.
- Gozado.
Ela dissera uns amigos. Seria alguém do seu tempo? A velha turma? Ele nunca mais vira os antigos amigos do casal. Ela sempre fora mais social do que ele. Quem sabe era um amigo? Ela era uma mulher bonita, esbelta, claro que podia ter namorados, a vaca. E ela estava pensando: ele odiava festas, odiava ter gente em casa. Programa, para ele, era ir para a casa do papai jogar buraco. Agora tem amigos em casa. Ou será uma amiga? Afinal ele ainda era moço… deixara a amiga no apartamento e viera fazer compras. E comprava vinhos importados, o farsante. Ele pensou: ela não sente minha falta. Tem a casa cheia de amigos. E na certa viu que eu fiquei engasgado ao vê-la, pensa que eu sinto falta dela. Mas não vai ter essa satisfação, não senhora.
- Meu estoque de bebidas não dura muito. Tem sempre gente lá em casa – disse ele.
- Lá em casa também é uma festa atrás da outra.
- Você sempre gostou de festas.
- E você, não.
- A gente muda, né? Muda de hábitos…
- Tou vendo.
- Você não me reconheceria se viesse viver comigo outra vez.
Ela, ainda sorrindo:
- Que Deus me livre.

Aquela vaca, pensou ele, antes de dormir."
Luis Fernando Veríssimo
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