domingo, 27 de setembro de 2009

Dar um tempo


"Não conheço algo mais irritante do que dar um tempo, para quem pede e para quem recebe.
O casal lembra um amontoado de papéis colados. Papéis presos.
Tentar desdobrar uma carta molhada é difícil. Ela rasga nos vincos.
Tentar sair de um passado sem arranhar é tão difícil quanto.
Vai rasgar de qualquer jeito, porque envolve expectativa e uma boa dose de suspense.
Os pratos vão quebrar, haverá choro, dor de cotovelo, ciúme, inveja, ódio.
É natural explodir. Não é possível arrumar a gravata ou pintar o rosto quando se briga.
Não se fica bonito, o rosto incha com ou sem lágrimas.
Dar um tempo é se reprimir, supor que se sai e se entra em uma vida com indiferença,
sem levar ou deixar algo.
Dar um tempo é uma invenção fácil para não sofrer.
Mas dar um tempo faz sofrer pois não se diz a verdade.
Dar um tempo é igual a praguejar "desapareça da minha frente".É despejar, escorraçar, dispensar. Não há delicadeza. Aspira ao cinismo.
É um jeito educado de faltar com a educação.
Dar um tempo não deveria existir porque não se deu a eternidade antes.
Quando se dá um tempo é que não há mais tempo para dar,
já se gastou o tempo com a possibilidade de um novo romance.
Só se dá o tempo para avisar que o tempo acabou.
E amor não é consulta, não é terapia, para se controlar o tempo.
Quem conta beijos e olha o relógio insistentemente não estava vivo para dar tempo.
Deveria dar distância, tempo não. Tempo se consome, se acaba, não é mercadoria, não é corpo. Tempo se esgota, como um pássaro lambe as asas e bebe o ar que sobrou de seu vôo.
Qualquer um odeia eufemismo, compaixão, piedade tola.
Odeia ser enganado com sinônimos e atenuantes.
Odeia ser abafado, sonegado, traído por um termo.
Que seja a mais dura palavra, nunca dar um tempo.
Dar um tempo é uma ilusão que não será promovida a esperança.
Dar um tempo é tirar o tempo. Dar um tempo é fingido.
Melhor a clareza do que os modos.
Dar um tempo é covardia, para quem não tem coragem de se despedir.
Dar um tempo é um tchau que não teve a convicção de um adeus.
Dar um tempo não significa nada e é justamente o nada que dói.
Resumir a relação a um ato mecânico dói.
Todos dão um tempo e ninguém pretende ser igual a todos nessa hora.
Espera-se algo que escape do lugar-comum.
Uma frase honesta, autêntica, sublime, ainda que triste.
Não se pode dar um tempo, não existe mais coincidência de tempos entre os dois.
Dar um tempo é roubar o tempo que foi.
Convencionou-se como forma de sair da relação limpo e de banho lavado, sem sinais de violência. Ora, não há maior violência do que dar o tempo.
É mandar matar e acreditar que não se sujou as mãos.
É compatível em maldade com "quero continuar sendo teu amigo".
O que se adia não será cumprido depois."





Fabricio Carpinejar (do livro "O amor esquece de começar")

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