segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A mulher apaixonada


"É um ser em estado de torcida do Flamengo. Torce mais por ele (o amado) que pela Seleção. Entra no campo, agride o juiz, salta o alambrado, topa qualquer desafio. Só vê a vitória.
Vai pro exílio, larga carreira, profissão, conveniência, partido político. Só tem um caminho e uma verdade: o amor. O resto virá depois. Sem ele, o tudo é nada.
É o mais paciente dos seres impacientes. Sempre em estado de “estou pronta”, leva anos esperando com uma insuportável e maravilhosa impaciência, exigência, dedicação, entrega, cegueira, vontade de quintais, praias e amarrações que supõe perfeitas e definitivas. Ninguém vive a provisoriedade com tanto sentido de permanência. Ninguém assina em branco e antecipa tantos avais de afeto. Ninguém erra com tanta convicção e decência.
É fera e santa; guerreira e gato; desastrada e genial, capaz de usar fitas, meias coloridas; de enfrentar solidões, distâncias, presenças e furacões pelo ser amado.
É o mais regular dos seres irregulares porque não julga, não pensa, não avalia: sente. E que se danem o mundo, as regras, as regulações, disposições, legislações e tudo aquilo que a mãe ensinou! Que o mundo exploda em flores!
Ser de grandezas, só vive de migalhas.
Entende de lençóis iluminados pela luz do corredor nas noites sem sono; conhece ruídos diferentes de tique-taques e entende de cantores e poetas (escolhidos secretamente).
Interpreta as mensagens mais sutis do amado: tom de voz; espaço entre uma e outra frase; fomes dominicais; impressões vagas de cansaço, tédio, alegria ou saudade expressas por fungados, suspiros, desabafos, interjeições, gestos, sons, olhares.
Mistura disposição com vontade. Possibilidade com ânsia. Dificuldade com não querer. Em suma: é o mais incapaz dos capazes do que há de melhor, mais lindo, legítimo e verdadeiro.
Especialista em pretextos; modista de oportunidades; navegantes de esperanças; tecelã de ternuras; doceira de amarguras.
É furacão e chuvisco; exaltação e placidez; adivinhação e alienação; sábia e patusca; maravilha e susto; mãe e mulher; filha e bruxa; santa e desastrada.
O único ser que topa qualquer parada não é o herói, o desesperado ou o valente: é a mulher apaixonada."

Artur da Távola

Soneto do Maior Amor

"Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.


E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.


Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo


Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo."


Vinícius de Moraes

frases soltas


Victor Hugo

Desacorrentadas

"Se você alcança uma certa longevidade e tem um parceiro bacana, mantenha-o, claro . Mas se está sozinha e já teve vários bons romances, vai procurar sarna pra se coçar a troco de quê?


O amor liberta? De certa forma, sim. Amar faz você desprender-se da razão, incorporar novos hábitos, expandir seus sentimentos, invadir recantos da sua alma nunca antes explorados. De fato, é bem poético e libertador amar.


Mas tem seus contratempos, lógico. A convivência entre duas pessoas nem sempre é um mar de calmaria, muitas concessões necessitam ser feitas, ou seja, alma gêmea não existe, é conversa. Ainda assim, é melhor estar amando do que não estar amando. Ao menos até uma determinada idade.

Circulam por aí reportagens que enaltecem o amor aos 70, 80 anos, dizendo que nunca devemos encerrar as buscas, que o amor merece ser encontrado em qualquer etapa da vida. Merece, mas tenho ressalvas a fazer.
Se você alcança uma certa longevidade e tem um parceiro bacana, mantenha-o, claro. Mas se você está sozinha da silva, já teve vários bons romances na vida e está em paz com a sua solidão, vai procurar sarna pra se coçar a troco de quê?

Há duas mulheres famosas na faixa dos 60 anos que, depois de amarem muito, já manifestaram publicamente a sua desistência em seguir procurando companhia (ainda que eu intua que esse desprendimento ainda vai lhes proporcionar novas surpresas amorosas). Mas, enfim, são mulheres inteligentes e bem resolvidas, e essa postura de “largar de mão” me inspirou: pretendo seguir a mesma cartilha. Não que eu colecione desilusões, pelo contrário. Não tenho do que me queixar. Já vivi o lado zen e o lado tsunâmico do amor, e o saldo é de puro prazer e gratidão. Sou totalmente pró-amor, nem penso em aposentadoria agora. Mas o agora vai se transformar em depois, e depois é outra história.

Estou sem a menor pressa de que o tempo passe, mas vai passar e quando eu chegar nos meus 60 e tantos, bem saudável, independente e mantendo o espírito da juventude (estão rindo do quê?), pretendo curtir a vida mais do que já curto hoje. E não haverá problema em estar sozinha, caso estiver. Quem tem amigos, não se aperta. Ainda mais quando são amigos de diversas tribos, diversas idades, gente com a cabeça aberta, o humor tinindo, bem informados - existe turma melhor? Depois de uma noitada regada a ótimas conversas, você pega sua bolsa e volta pra casa, pega seu livro, se esparrama na cama e dorme até a hora que quiser, se for final de semana - e se não for, também.

Além de amigos, ter algum dinheiro é importante, lamento tocar nesse assunto desagradável. É ele que possibilitará que você viaje, vá a shows, receba gente querida em casa, se presenteie com pequenos mimos. Sim, você pode fazer tudo isso com um parceiro ao lado, mas não na hora que você bem entender e sem dar satisfações. Tudo terá que ser negociado. E será preciso abrir espaço na agenda para os amigos dele, a família dele, as carências dele, as doenças dele, as galinhagens dele. Será que, maduríssima da silva, terei tempo e paciência para me dedicar tanto assim à manutenção de uma relação nova? Sem falar em continuar tendo que se preocupar com o próprio corpo, com as artimanhas da sedução, com o sexo. Ai, o sexo... Sentirei saudades.


Poético e libertador é pensar que nunca estarei sem ninguém, porque chega uma hora em que a gente decide que é alguém, e basta."

Martha Medeiros (Jornal Zero Hora, 30/08/2009)

sábado, 29 de agosto de 2009

Ódio?

"Ódio?
Ódio por ele? Não...
Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto...
Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme
Campo Santo!
Ah! nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo d’outra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... não vale a pena..."
Florbela Espanca

frases soltas


Albert Einstein

Mãe


"Por que Deus permite que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não apaga

quando sopra o vento e a chuva desaba, veludo escondido

na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento.

Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça, é eternidade.

Por que Deus se lembra - mistério profundo - de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei:

Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele,

velho embora, será pequenino feito grão de milho".



Carlos Drummond de Andrade

A Alegria na Tristeza


"O título desse texto na verdade não é meu, e sim de um poema do uruguaio Mario Benedetti. No original, chama-se "Alegría de la tristeza" e está no livro "La vida ese paréntesis" que, até onde sei, permanece inédito no Brasil.

O poema diz que a gente pode entristecer-se por vários motivos ou por nenhum motivo aparente, a tristeza pode ser por nós mesmos ou pelas dores do mundo, pode advir de uma palavra ou de um gesto, mas que ela sempre aparece e devemos nos aprontar para recebê-la, porque existe uma alegria inesperada na tristeza, que vem do fato de ainda conseguirmos senti-la.

Pode parecer confuso mas é um alento.

Olhe para o lado: estamos vivendo numa era em que pessoas matam em briga de trânsito, matam por um boné, matam para se divertir. Além disso, as pessoas estão sem dinheiro. Quem tem emprego, segura. Quem não tem, procura.

Os que possuem um amor desconfiam até da própria sombra, já que há muita oferta de sexo no mercado. E a gente corre pra caramba, é escravo do relógio, não consegue mais ficar deitado numa rede, lendo um livro, ouvindo música. Há tanta coisa pra fazer que resta pouco tempo pra sentir.

Por isso, qualquer sentimento é bem-vindo, mesmo que não seja uma euforia, um gozo, um entusiasmo, mesmo que seja uma melancolia.

Sentir é um verbo que se conjuga para dentro, ao contrário do fazer, que é conjugado pra fora. Sentir alimenta, sentir ensina, sentir aquieta. Fazer é muito barulhento. Sentir é um retiro, fazer é uma festa. O sentir não pode ser escutado, apenas auscultado. Sentir e fazer, ambos são necessários, mas só o fazer rende grana, contatos, diplomas, convites, aquisições.

Até parece que sentir não serve para subir na vida.Uma pessoa triste é evitada. Não cabe no mundo da propaganda dos cremes dentais, dos pagodes, dos carnavais. Tristeza parece praga, lepra, doença contagiosa, um estacionamento proibido.

Ok, tristeza não faz realmente bem pra saúde, mas a introspecção é um recuo providencial, pois é quando silenciamos que melhor conversamos com nossos botões. E dessa conversa sai luz, lições, sinais, e a tristeza acaba saindo também, dando espaço para uma alegria nova e revitalizada.

Triste é não sentir nada. "

Martha Medeiros

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Você não me ensinou a te esquecer

"Não vejo mais você faz tanto tempo

Que vontade que eu sinto

De olhar em seus olhos, ganhar seus abraços

É verdade, eu não minto



E nesse desespero em que me vejo

Já cheguei a tal ponto

e me trocar diversas vezes por você

Só pra ver se te encontro



Você bem que podia perdoar

E só mais uma vez me aceitar

Prometo agora vou fazer por onde nunca mais perdê-la

Agora, que faço eu da vida sem você?

Você não me ensinou a te esquecer

Você só me ensinou a te querer

E te querendo eu vou tentando te encontrar

Vou me perdendo

Buscando em outros braços seus abraços

Perdido no vazio de outros passos

Do abismo em que você se retirou

E me atirou e me deixou aqui sozinho

Agora, que faço eu da vida sem você?

Você não me ensinou a te esquecer

Você só me ensinou a te querer e te querendo eu vou tentando me encontrar"



Caetano Veloso

frases soltas


Caio Fernando de Abreu

Nem sempre a mesma....


"Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre.

Não me mostrem o que esperam de mim, porque vou seguir meu coração.

Não me façam ser quem não sou.

Não me convidem a ser igual, porque sinceramente sou diferente.

Não sei amar pela metade.

Não sei viver de mentira.

Não sei voar de pés no chão.

Sou sempre eu mesma,mas com certeza não serei a mesma pra sempre."


Clarice Lispector

O tempo


" O tempo é muito lento para os que esperam

Muito rápido para os que tem medo

Muito longo para os que lamentam

Muito curto para os que festejam

Mas, para os que amam, o tempo é eterno."


William Shakespeare

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Eu, modo de usar


"Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir.
Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar.
Acordo pela manhã com ótimo humor mas ... permita que eu escove os dentes primeiro.
Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza.

Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir,
mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo,
cultivando este tipo de herança de seus pais.
Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto,
um albergue da juventude.
Eu saio em conta, você não gastará muito comigo.
Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sózinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada.
( Então fique comigo quando eu chorar, combinado?).

Seja mais forte que eu e menos altruísta!
Não se vista tão bem... gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços,
gosto de pernas e muito de pescoço.
Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pelos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar as vezes, mesmo na sua idade.

Leia, escolha seus próprios livros, releia-os.
Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida,
não de boate que isto é coisa de gente triste.
Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês mas, me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca ...
Goste de música e de sexo, goste de um esporte não muito banal.
Não invente de querer muitos filhos, me carregar pra a missa, apresentar sua familia...
isso a gente vê depois ... se calhar ...
Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora.

Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres,
tenha amigos e digam muitas bobagens juntos.
Não me conte seus segredos ... me faça massagem nas costas.
Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções.
Me rapte!Se nada disso funcionar ...
Experimente me amar !!! "


Martha Medeiros

Abraço


"De repente deu vontade de um abraço...
Uma vontade de entrelaço,
de proximidade, de amizade... sei lá...
Talvez um aconchego que enfatize a vida
e amenize as dores...
Que fale sobre os amores,
que seja teimoso e,
ao mesmo tempo, forte.
Deu vontade de poder rever,
saudade de um abraço.
Um abraço que eternize o tempo
e preencha todo espaço
mas que faça lembrar do carinho,
que surge devagarzinho
da magia da união dos corpos,
das auras... sei lá...
Lembrar do calor das mãos,
acariciando as costas,
a dizer: "estou aqui."
Lembrar do trançar
dos braços envolventes
e seguros afirmando:
"estou com você"...
Lembrar da transfusão de forças
com a suavidade do momento...
sei lá...abraço...abraço...abraço...
abraço... abraço...abraço...
abraço..abraço...abraço...
O que importa é a magia deste abraço!
A fusão de energia que harmoniza,
integra tudo, e que se traduz
no cosmo, no tempo e no espaço.
Só sei que agora
deu vontade desse abraço
Que afaste toda e qualquer angústia.
Que desperte a lágrima da alegria,
e acalme o coração
Que traduza a amizade,
o amor e a emoção...
E, para um abraço assim,
só pude pensar em você...nessa sua energia,
nessa sua sensibilidade,
que sabe entender o porquê...
dessa vontade desse abraço... "


Vinícius de Moraes

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Namorofobia

"A praga da década são os namorofóbicos. Homens (e mulheres) estão cada vez mais arredios ao título de namorado, mesmo que, na prática, namorem.

Uma coisa muito estranha. Saem, fazem sexo, vão ao cinema, freqüentam as respectivas casas, tudo numa freqüência de namorados, mas não admitem. Tem alguns que até têm o cuidado de quebrar a constância só para não criar jurisprudência, como se diria em juridiquês. Podem sair várias vezes numa semana, mas aí tem que dar um intervalo regulamentar, que é para não parecer namoro.

- É tua namorada?

- Não, a gente tá ficando.

Ficando aonde, cara pálida?

Negam o namoro até a morte, como se namoro fosse casamento, como se o título fizesse o monge, como se namorar fosse outorgar um título de propriedade. Devem temer que ao chamar de namorada(o) a criatura se transforme numa dominadora sádica, que vai arrastar a presa para o covil, fazer enxoval, comprar alianças, apresentar para a parentada toda e falar de casamento - não vai. Não a menos que seja um(a) psicopata. Mais pata que psico.

Namorar é leve, é bom, é gostoso. Se interessar pelo outro e ligar pra ver se está tudo bem pode não ser cobrança, pode ser saudade, vontade de estar junto, de dividir.

A coisa é tão grave e levada a extremos que pode tudo, menos chamar de namorado. Pode viajar junto, dormir junto, até ir ao supermercado junto (há meses!), mas não se pode pronunciar a palavra macabra: NAMORO.

Antes, o problema era outro: CASAMENTO. Ui. Vá de retro! Cruz credo!

Desafasta.

Agora é o namoro, que deveria ser o test drive, a experiência, com toda a leveza do mundo. Daqui a pouco, o problema vai ser qualquer tipo de relacionamento que possa durar mais que uma noite e significar um envolvimento maior que saber o nome.

Do que o medo? Da responsabilidade? Da cobrança? De gostar? Sempre que a gente se envolve com alguém tem que ter cuidado. Não é porque "a gente tá ficando" que não se deve respeito, carinho, cuidado. Não é porque "a gente tá ficando" que você vai para cama num dia e no outro finge que não conhece e isso não dói ou não é filhadaputice. Não é porque "a gente tá ficando" que o outro passa ser mais um número no rol das experiências sexuais - e só.

Ou é?

Tô ficando velha?

Paciência. Comigo, só namorando. "


Patricia Antoniette

frases soltas



Caio Fernando de Abreu

Amor e Luz

"Radical assim, sim. Você gosta do que você é. Você admira quem tem asqualidades que você também acha que tem ou gostaria de ter.Você gosta do que lhe diz respeito, gosta das pessoas que têm seu sangue,das que você elege, das que não ameaçam você.Você e o mundo são assim. Todos os seres humanos são assim, racionalmente.Na tv, concordamos com quem diz o que nós pensamos. No jornal, damoscrédito a quem escreve o que nos representa. No fundo, nós só gostamos denós mesmos.Leio uma crítica do Ricardo Feltrin e adoro-a. Claro, ela reflete o que eu tambémpenso, tenho que gostar. Dela, a crítica, dele, o crítico.Cada ser humano se sente o centro do mundo, vê tudo sob sua ótica e só ama a
si mesmo. Até sua falta de auto-estima prova que seu interesse é só um, ele
próprio. Egoístas. Todos somos.
E aí vem o amor.
E dá uma rasteira no nosso ego imbecil.
O amor.
Que subitamente faz com que a gente ame alguma coisa, alguém, que é um
não-eu. Não é a mamãe, nem o papai, vovó, titio, filhinho. É outra pessoa.
De outra família, outro lugar, que tem outra história. Muitas vezes, é até de
outro sexo.
E amamos esta pessoa sem saber como ou por quê.
Porque o amor não é verbo que a gente conjuga na primeira pessoa de forma
racional, amor é verbo que faz da gente objeto.
O amor acontece.
E só quem aprende, entende, exercita o amor sabe que sua potência, sua
imensidão.
Quem nunca amou, pode achar que sabe mas não sabe.
Amor é único, não parece com nada.
O que mais se parece com amor deve ser chocolate. Ou queijo. Quando a
gente tem vontade de comer chocolate não serve mais nada. Só chocolate mesmo.
Queijo é assim também. É uma coisa em si.
No fundo, todo mundo que vive em desamor, de forma pontual ou em longas doses
ao longo dos anos, vai ficando amargo. Depois azedo. Depois, podre.
As pessoas ruins, ácidas, infelizes, que não sentem prazer, vivem anestesiadas.
São sempre as mais ranzinzas, as mais chatas, as que alfinetam, as que ferroam
sem parar.
Não são rompantes normais da ira, é um azedume que contamina tudo, uma
humidade triste de quem vive sem luz, onde o bolor diário da inveja cresce.
É triste, isto. Gente que vive embolorada por dentro, por falta de amor e sol.
Lamento por todas elas.
Porque se elas se lançassem ao amor, mudariam num instante.
No dia dos namorados, só posso desejar muito amor a todos."


Rosana Hermann


Esse momento tem que se tornar seu tudo





"Esqueça o passado, esqueça o futuro, esse momento é tudo.


Esse momento tem que se tornar sua oração, seu amor, sua vida, sua morte, seu tudo.


É isso aí.


E viva corajosamente, não seja covarde.


Não pense nas consequências; somente os covardes pensam nas conseqüências."
Osho

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Se tudo existe


"Se tudo existe é porque sou.


Mas por que esse mal estar?


É porque não estou vivendo do único modo


que existe para cada um de se viver e nem sei qual é.


Desconfortável.


Não me sinto bem.


Não sei o que é que há.


Mas alguma coisa está errada e dá mal estar.


No entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo.


Abro o jogo.


Só não conto os fatos de minha vida:


sou secreta por natureza.


O que há então?


Só sei que não quero a impostura.


Recuso-me.


Eu me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado. "


Clarice Lispector

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Para o Amor Perdido

"Fiquei triste. Num momento você estava aqui, no outro já não estava. Igual a um bicho de estimação que morre de repente e somem com o corpo.

Para onde foi tudo aquilo? Que tínhamos tão seguro. Tão certos de sua eternidade. Para onde foi, hein? Meu peito, depósito subitamente esvaziado, aperta-se no meio de tanto espaço.Tento identificar o instante, quando o que tínhamos se perdeu. Mas nem sei se o perdemos juntos ou se juntos já não estávamos. Me desespera saber que um amor, um dia desses tão grande, possa ter desaparecido com tanta facilidade.

Como já disse, estou triste; e isso me faz acreditar no poder das cartas. Não falo de tarô, mas destas, escritas e mandadas ou não mandadas. Cheias de questões e metáforas, que assim, misturadas cuidadosamente, num cafona português polido, soam mais sensatas.

Qual poder espero desta carta? Simples: que deixe registrado este meu estranho momento. Quando o que devia ser alívio revela-se angústia. E a cabeça não pára, vasculhando cantos vazios.Não gosto de perder as minhas coisas, você sabe. E hoje, cercada pela sua ausência, procuro o que procurar. Experimentando o desânimo da busca desiludida. Pois, se um amor como aquele acaba dessa maneira, vale a pena encontrar um outro? Será inteligente apostar tanto de novo?Aposto que você está pouco se lixando para isso tudo. Que seguiu sua vida tranqüilamente, como se nada de tão importante tivesse ocorrido. E está até achando graça desta minha carta, julgando-a patética e ridícula. Você, redundante como sempre.

Só há uma coisa certa a respeito disso: não desejo resposta sua. É, esta é uma daquelas cartas que não são para ser respondidas. Apenas lidas, relidas, depois picadas em pedacinhos. Sendo esse o destino mais nobre para as emoções abandonadas.

Queria apenas pedir um favor antes que você rasgue este resto do que tivemos. Se algum dia, tendo bebido demais, sei lá, você acabar pensando tolices parecidas com estas, escreva também uma carta. Mesmo sem jamais saber o que você irá dizer, sei que ela fará de mim menos ridícula. Neste amor e, por isso, em todo o resto. Pois adoraria que você fosse capaz de tanto - escrever uma carta é um ato de desmedida coragem. E eu ficaria, enfim, feliz comigo, por tê-lo amado. Um homem assim, capaz de escrever bobagens amorosas.Então é isso - como sou insuportavelmente romântica, meu Deus. Termino aqui essa história, de minha parte, contando que estas palavras façam jus ao fim do amor que senti. E deixando este testamento de dor, onde me reconheço fraca e irremediável. Porque ainda gostaria de poder acreditar que você nadaria de volta para mim."


Fernanda Young

Decidi ficar com você.....


"Você está devagar e com medo.

Alguém segura na sua mão e diz:

"Não se preocupe estarei ao seu lado.

E você fala:

"Mas voce não tem que ir? "

E ouve:

"Tenho que ir, mas decidi ficar com você."

Essa pessoa aceitou sua lentidão e não dispensou você."


Pe.Fábio de Melo

SORRY, I CAN'T

"Tem dias que dá preguiça mesmo de viver. A gente olha pra própria vidinha mais ou menos e se pergunta: o que, diabos, eu estou fazendo aqui? A resposta, a gente não consegue dar. Mas tem dias que simplesmente não dá. Não dá pra acreditar no futuro, no presente e desconfiamos até mesmo do passado. Tem horas que a gente parece estar no meio de um pesadelo (ou no meio de um sonho bom que nunca vai se realizar). Tem dias que não dá pra acreditar que a Xuxa usa hidratante Monange, que a Gisele Bündchen usa Pantene e que a Carolina Dieckmann tem dentes sensíveis. Chega uma hora que a realidade te espreme num canto, te dá um tapa na cara e te pergunta: o que é que você está fazendo aqui?

Não sei. Não sabemos. Procuramos pistas na ciência, na fé e na religião. Criamos Deus e deuses
pra explicar o inexplicável. Buscamos pistas de que estamos no caminho certo ou, pelo menos, no melhor caminho. Acreditamos nos sinais, no destino e na contradição deles. Entendemos um pé-na-bunda como um sinal de que era pra ser assim. Entendemos um re-encontro como um plano traçado pelo destino. E assim vamos mexendo as peças de um jogo louco e sem explicação.

Aonde queremos chegar fazendo o que fazemos, sendo quem somos, acreditando no que acreditamos? E, afinal, quem somos? Em que acreditamos, se não acreditamos em nós mesmos? Desconstruímos sonhos ou os arremessamos ao acaso. Desacreditamos da sorte, do acaso ou do destino. Despedaçamos nossa auto-estima, nossa confiança na própria fé. Insultamos Deus e o diabo.

E assim, seguimos à própria sorte. Mandamos e desmandamos na nossa vida. A vida manda e desmanda na nossa sorte. Procuramos refúgio nos nossos vícios ocultos, ainda que esses vícios sejam academia e solidão. Fugimos do mundo pra fugir de nós mesmos. Fugimos de nós mesmos para fugir do mundo. Tem dias que simplesmente não dá. Não dá pra rir de piada sem graça, não dá pra agüentar a chatice alheia (já basta a nossa própria), não dá pra gostar de comer rúcula (quem inventou essa porra?). Chamem de TPM, de crise existencial ou o diabo. Tem dias que só uma enorme barra de chocolte com ovomaltine te entende. Desculpa, mas tem dias que não dá pra brincar de faz-de-conta. Não posso. Hoje, não.!"


BRENA BRAZ

Devolva-me

“O retrato que eu te dei, se ainda tens não sei...” Retrato? Pois é. Hoje estou aqui não para falar sobre divisão de bens graúdos, como apartamentos, automóveis, quadros, esse angu-de-caroço que casais casadésimos passam quando se divorciam, e sim para falar das separações de namoro, aquelas em que cada um vive na sua casa, com suas coisas, nunca comprou nada em parceria, mas sabe como é, um dia ficou uma camiseta na casa de um, e um iPod na casa do outro, e um tênis na casa de um, e uma prancha na casa do outro, e uma máquina fotográfica na casa de um, e um perfume na casa do outro. Puf. O namoro acaba. E acaba mal, com aquela mágoa de cerrar mandíbulas. Telefones mudos, nenhum sinal de vida. E a tralha que restou, devolve-se?

Os manuais de boas-maneiras certamente já tocaram nesse assunto. Deve haver algumas regras práticas e posso imaginar quais sejam. Se o ex deixou na sua casa coisas de relativo valor, como aparelhos eletrônicos, equipamento esportivo, eletrodomésticos ou uma joia de família, noblesse oblige: reúna a muamba e deixe na portaria dele ou na sua, e mande um bilhetinho avisando que o pacote está à disposição. Você não quer encrenca com a polícia, quer?

Se forem coisas mais prosaicas, como um livro, um disco, um chinelo, um biquíni, uma carteirinha de clube, um boné, convém dar um tempo e esperar o dono se pronunciar a respeito, pra não parecer que você está louco pra se livrar de qualquer lembrança ou, pior, o outro achar que você está arranjando pretexto para se reaproximar. Seja qual for o caso, não jogue nada no lixo – ainda.

Quanto às miudezas, tipo escova de dente, passador de cabelo, resto de xampu, batom gasto, isqueiro de tabacaria e aquela cueca que já nem se adivinha a cor, jogue tudo no lixo – agora.

Pronto. Assunto encerrado?

Mais ou menos. Faltou desenvolver um pouquinho aquela parte que diz: “pra não parecer que você está louco para se livrar de qualquer lembrança”. Ora, delicadeza a essa altura? Você vai, sim, deixar na porta do infeliz até o cotonete usado que ele esqueceu na bancada do banheiro para demonstrar que você não quer nenhum vestígio da passagem dele pela sua vida, aquele vira-lata, cafajeste, sem-vergonha. Até o resto de sanduíche que ficou na geladeira você vai mandar para ele por um motoboy, para deixar bem claro que os farelos do desgraçado não merecem frequentar a sua lixeira e que você não estava brincando quando disse que queria vida nova – mesmo que ainda não esteja bem certa se conseguirá sobreviver sem aquele vira-lata, cafajeste, sem-vergonha.

E tem aquela outra parte que fala sobre “o outro achar que você está arranjando pretexto para se reaproximar”. Ora, mas se estivermos falando do amor da sua vida, como é que você vai fazer para aguentar o sumiço, a saudade, o silêncio? Que outra maneira de mostrar a ele que você cortou o cabelo e ficou deslumbrante? Como conferir se ele emagreceu e está com um ar de cachorro abandonado? Faça um delivery! Vim trazer pessoalmente o que você esqueceu lá em casa, viu que criatura meiga e gentil você está perdendo?

Decida-se em que time joga (o das que querem se livrar de qualquer lembrança ou o das que querem um pretexto para procurá-lo de novo), e daí sim, assunto encerrado."


MARTHA MEDEIROS (JORNAL ZERO HORA 23/08/09)

sábado, 22 de agosto de 2009

Sobre o amor


"Houve uma época em que eu pensava que as pessoas deviam ter um gatilho na garganta: quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo, o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma defesa intolerante contra os levianos e que refletia sem dúvida uma enorme insegurança de seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o passar dos anos a idéia foi abandonada, a vida revelou-me sua complexidade, suas nuanças. Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem pelo menos achar que ama e, quando a pessoa mente, a outra percebe, e se não percebe é porque não quer perceber, isto é: quer acreditar na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa expressão mesmo sabendo que é mentira. O mentiroso, nesses casos, não merece punição alguma.

Por aí já se vê como esse negócio de amor é complicado e de contornos imprecisos. Pode-se dizer, no entanto, que o amor é um sentimento radical — falo do amor-paixão — e é isso que aumenta a complicação. Como pode uma coisa ambígua e duvidosa ganhar a fúria das tempestades? Mas essa é a natureza do amor, comparável à do vento: fluido e arrasador. É como o vento, também às vezes doce, brando, claro, bailando alegre em torno de seu oculto núcleo de fogo.

O amor é, portanto, na sua origem, liberação e aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o amor institucionalizado, disciplinado, integrado na sociedade. O casamento é um contrato: duas pessoas se conhecem, se gostam, se sentem a traídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso poderia ser uma coisa simples, mas não é, pois há que se inserir na ordem social, definir direitos e deveres perante os homens e até perante Deus. Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar (ou a ambos), a simples assinatura do contrato já muda tudo. Com o casamento o amor sai do marginalismo, da atmosfera romântica que o envolvia, para entrar nos trilhos da institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que, adultos, abandonem a casa para fazer sua própria vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal. Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas exceções vive a nossa irrenunciável esperança.

Conheci uma mulher que costumava dizer: não há amor que resista ao tanque de lavar (ou à máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar nas árvores do parque, à tarde incendiando as nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura estaria se desenrolando naquele momento nos bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua volta certamente não acontecia nada: as pessoas em suas respectivas casas estavam apenas morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa inquietação bovariana prepara o caminho da aventura, que nem sempre acontece. Mas dificilmente deixa de acontecer. Pode não acontecer a aventUra sonhada, o amor louco, o sonho que arrebata e funda o paraíso na terra. Acontece o vulgar adultério — o assim chamado —, que é quase sempre decepcionante, condenado, amargo e que se transforma numa espécie de vingança contra a mediocridade da vida. É como uma droga que se toma para curar a ansiedade e reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela então se diz — e volta ao bife com fritas.

Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive, como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer.

A barra é pesada. Quem conheceu o delírio dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi Gogol, no Inspetor Geral quem captou a decepção desse despertar. O falso inspetor mergulhara na fascinante impostura que lhe possibilitou uma vida de sonho: homenagens, bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da filha do prefeito. Eis senão quando chega o criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor está para chegar. Ele se assusta: mas então está tUdo acabado? Não era verdade o sonho? E assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa esse sabor de impostura na boca, como se a felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico Buarque: sofrendo normalmente.

Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal realidade o guarda­roupa, a cômoda, a camisa usada na cadeira, os chinelos. E tudo impregnado da ausência do sonho, que é agora uma agulha escondida em cada objeto, e te fere, inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro. E te fere não porque ali esteja o sonho ainda, mas exatamente porque já não está: esteve. Sais para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema, aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o mundo é um incomensurável amontoado de inutilidades. E de repente o táxi que te leva por uma rua onde a memória do sonho paira como um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas, ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a tudo, sofrer tudo de uma vez e habituar­se? Mais dia menos dia toda a lembrança se apaga e te surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta perdi burramente! O amor é uma doença como outra qualquer.

E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma anormalidade. Como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa? E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o corpo não era lá essas coisas... Na cama era regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia tolices, e pensar que quase morro!...

Isso dizes agora, comendo um bife com fritas diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e nimbos. Em paz com a vida. Ou não."


Ferreira Gullar

Quando as Mulheres Acordam


"Impagável uma mulher quando acorda. Nada mais lindo e misterioso do que uma mulher acordando. Do que uma mulher antes das 10h da manhã, como uma vez vi umas fotos num livro de arte inglês, pelo que me lembro ou sonho. Uma mulher e suas verdades nos olhinhos que se espantam com o mundo como uma criatura que acaba de sair do útero, o maior dos sustos, o maior dos assombros da existência.

Umas têm um mau humor tremendo, meu Deus, te deixam acuado, são capazes de te xingar, espezinhar, te maldizer, para depois te amar ainda mais.Outras acordam paranóicas com os cabelos, tenham caracóis, segredos, ou sejam lisos, loiros ou negros. Ainda mais se for no começo do amor, do caso, do namoro, do ensaio de casamento. Estas nos deixam na cama e correm para o espelho. Tudo por uma rápida conferência de Narciso. Se acham que estão "horríveis", naquele jeito, como naquele hiperbólico julgamento, dote tão feminino, te abandonam por horas no banheiro... E voltam as mais lindas desse mundo.

Existem aquelas que não estão nem ai, estas são raras, acordam e te presenteiam com aquele sorriso, como se tivessem sonhado com a possibilidade do nirvana ao teu lado, cria da tua costela, como canta o outro Chico, uma beleza de menina!

Os mistérios de uma mulher quando acorda são muitos.

Umas simplesmente silenciam, no máximo um monossílabo, isso quando são, por alguma razão, indagadas. Elas têm dúvidas, ainda não sabem se amam ou não amam, elas ainda guardam velhas heranças amorosas, tudo bem, coisas da vida.

Algumas acordam assustadas, como se dissessem, "que besteira eu fiz, nunca mais eu bebo".Outras te mandam embora antes da aurora, para dormir o sono dos justos, o sono que livra de pesos na consciência e possíveis laços imediatos. Certíssimas.

Adoráveis aquelas que mantêm a posição de "conchinha", embora os motores da cidade já ronquem, apesar de todos os despertadores, todos os celulares. Estas são plácidas, jamais submissas.

Existem aquelas que acordam e põem logo uma música, uma música de acordo com o clima. Se tem sol, rock'n'roll, se faz frio, jazz, algo cool... Se o dia está cinza, toca aquela, que diz assim, como não quer nada, uma porrada, "ah insensatez, que você fez, coração mais sem cuidado...".

Nada mais lindo e misterioso do que uma mulher acordando, seus gestos, a dramaturgia, o arranque para a vida ou a inércia nos teus braços.

Os barulhos de uma mulher acordando, a música dos ossos se espreguiçando, os gerúndios tantos das ações e silêncios, o chuveiro ao longe a nos dizer tantos desejos e coisas, meu Deus, aquela água já escorre linda e faz pocinhas líricas nas saboneteiras...

Quantas dúvidas e quantas certezas acordam juntas quando uma mulher acorda.


Xico Sá

O amor impossível é o verdadeiro amor

"Outro dia escrevi um artigo sobre o amor. Depois, escrevi outro sobre sexo. Os dois artigos mexeram com a cabeça de pessoas que encontro na rua e que me agarram, dizendo: "Mas... afinal, o que é o amor?" E esperam, de olho muito aberto, uma resposta "profunda". Sei apenas que há um amor mais comum, do dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, um amor que muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou "não te amo". Eu, branco, classe média, brasileiro, já vi esse amor mudar muito. Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo romântico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a busca de um "desregramento dos sentidos". Depois, nos anos 80/90 foi ficando um amor de consumo, um amor de mercado, uma progressiva apropriação indébita do "outro". O ritmo do tempo acelerou o amor, o dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável. Hoje, temos controle, sabemos por que "amamos", temos medo de nos perder no amor e fracassar na produção. A cultura americana está criando um "desencantamento" insuportável na vida social. O amor é a recusa desse desencanto. O amor quer o encantamento que os bichos têm, naturalmente.

Por isso, permitam-me hoje ser um falso "profundo" (tratar só de política me mata...) e falar de outro amor, mais metafísico, mais seminal, que transcende as décadas, as modas. Esse amor é como uma demanda da natureza ou, melhor, do nosso exílio da natureza. É um amor quase como um órgão físico que foi perdido. Como escreveu o Ferreira Gullar outro dia, num genial poema publicado sobre a cor azul, que explica indiretamente o que tento falar: o amor é algo "feito um lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa mancha/ que a mim chegou/ de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites estreladas/ como um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo como carrego meus cabelos ou uma lesão oculta onde ninguém sabe".

Pois, senhores, esse amor existe dentro de nós como uma fome quase que "celular". Não nasce nem morre das "condições históricas"; é um amor que está entranhado no DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, quase uma "lesão oculta" dos seres expulsos da natureza. Nós somos o único bicho "de fora", estrangeiro. Os bichos têm esse amor, mas nem sabem.

(Estou sendo "filosófico", mas... tudo bem... não perguntaram?) Esse amor bate em nós como os frêmitos primordiais das células do corpo e como as fusões nucleares das galáxias; esse amor cria em nós a sensação do Ser, que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso com o universo. Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o espermatozóide e óvulo se interpenetrando. Por obra do amor, saímos do ventre e queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa origem celular, indo até a dança primitiva das moléculas. Somos grandes células que querem se re-unir, separados pelo sexo, que as dividiu. ("Sexo" vem de "secare" em latim: separar, cortar.)

O amor cria momentos em que temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a máquina da vida se explica, em que tudo parece parar num arrepio, como uma lembrança remota. Como disse Artaud, o louco, sobre a arte (ou o amor) : "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de algo transcendental com que a arte nos põe em contato." E a arte não é a linguagem do amor? E não falo aqui dos grandes momentos de paixão, dos grandes orgasmos, dos grande beijos - eles podem ser enganosos. Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de um mistério que subitamente parece revelado. Há, nesse amor, uma clara geometria entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge, quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o seu brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre as tranças da mulher amada e tudo parece decifrado. Mas, não se decifra nunca, como a poesia. Como disse alguém: a poesia é um desejo de retorno a uma língua primitiva. O amor também. Melhor dizendo: o amor é essa tentativa de atingir o impossível, se bem que o "impossível" é indesejado hoje em dia; só queremos o controlado, o lógico. O amor anda transgênico, geneticamente modificado, fast love.

Mas, o fundo e inexplicável amor acontece quando você "cessa", por brevíssimos instantes. A possessividade cessa e, por segundos, ela fica compassiva. Deixamos o amado ser o que é e o outro é contemplado em sua total solidão. Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um rosto dormindo, e isso desperta em nós uma espécie de "compaixão" pelo nosso desamparo.

Esperamos do amor essa sensação de eternidade. Queremos nos enganar e achar que haverá juventude para sempre, queremos que haja sentido para a vida, que o mistério da "falha" humana se revele, queremos esquecer, melhor, queremos "não-saber" que vamos morrer, como só os animais não sabem. O amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Como os relâmpagos, o amor nos liga entre a Terra e o céu. Mas, como souberam os grandes poetas como Cabral e Donne, a plenitude do amor não nos faz virar "anjos", não. O amor não é da ordem do céu, do espírito. O amor é uma demanda da terra, é o profundo desejo de vivermos sem linguagem, sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse "absoluto", que está na calma felicidade dos animais.


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

ORIGEM FEMININA


"Existem várias lendas sobre a origem da Mulher.
Uma diz que Deus pôs o primeiro homem a dormir, inaugurando assim a anestesia geral, tirou uma de suas costelas e com ela fez a primeira mulher.
E que a primeira provação de Eva foi cuidar de Adão e agüentar o seu mau humor, enquanto ele convalescia da operação.
Uma variante desta lenda diz que Deus, com seu prazo para a Criação estourado, fez o homem às pressas, pensando “Depois eu melhoro”, e mais tarde, com tempo, fez um homem mais bem-acabado, que chamou Mulher, que é “melhor” em aramaico.
Outra lenda diz que Deus fez a mulher primeiro, e caprichou nas suas formas, e aparou aqui e tirou dali, e com o que sobrou fez o homem só para não jogar barro fora.
Zeus teria arrancado a mulher de sua própria cabeça.
Alguns povos nórdicos cultivam o mito da Grande Ursa Olga, origem de todas as mulheres do mundo, o que explica o fato das mulheres se enrolarem periodicamente em pêlos de animais, cedendo a um incontrolável impulso atávico, nem que seja só para experimentar, na loja, e depois quase desmaiar com o preço.
Em certas tribos nômades do Meio Oriente ainda se acredita que a mulher foi, originariamente, um camelo, que na ânsia de servir seu mestre de todas as maneiras foi se transformando até adquirir sua forma atual.
No Extremo Oriente existe a lenda de que as mulheres caem do céu, já de kimono.
E em certas partes do Ocidente persiste a crença de que mulher se compra através dos classificados, podendo-se escolher idade, cor da pele e tipo de massagem.
Todas estas lendas, claro, têm pouco a ver com a verdade científica. Hoje se sabe que o Homem é o produto de um processo evolutivo que começou com a primeira ameba a sair do mar primevo, e é o descendente direto de uma linha específica de primatas, tendo passado por várias fases até atingir o seu estágio atual e aí encontrar a Mulher, que ninguém ainda sabe de onde veio.
É certamente ridículo pensar que as mulheres também descendem de macacos. A minha mãe, não!
Uma das teses mais aceitáveis sobre o papel da mulher na evolução do homem é a de que o primeiro encontro entre os dois se deu no período paleolítico, quando um homo-sapiens mas não muito, chamado, possivelmente, Ugh, saiu para caçar e avistou, sentado numa pedra, penteando os cabelos, um ser que lhe provocou o seguinte pensamento, em linguagem de hoje:
”Isso é que é mulher e não aquilo que tenho na caverna”.
Ugh aproximou-se da mulher e, naquele seu jeitão, deu a entender que queria procriar com ela.
”Agh maakgrom grom”, ou coisa parecida. A mulher olhou-o de cima a baixo e desatou a rir.
É preciso lembrar que Ugh, embora fosse até bem apessoado pelos padrões da época, era pouco mais do que um animal aos olhos da mulher. Tinha a testa estreita e as mandíbulas pronunciadas e usava gordura de mamute nos cabelos.

A mulher disse alguma coisa como “Você não se enxerga, não?” e afastou-se, enojada, deixando Ugh desolado. Antes dela desaparecer por completo, Ugh ainda gritou: “Espera uns 10 mil anos pra você ver!”, e de volta à caverna exortou seus companheiros a aprimorarem o processo evolutivo.
Desde então, o objetivo da evolução do homem foi o de proporcionar um par à altura para a mulher, para que, vendo o casal, ninguém dissesse que ela só saía com ele pelo dinheiro, ou para espantar assaltantes.
Se não fosse por aquele encontro fortuito em alguma planície do mundo primitivo, o homem ainda seria o mesmo troglodita desleixado e sem ambição, interessado apenas em caçar e catar seus piolhos, e um fracasso social.
Mas de onde veio a primeira mulher, já que podemos descartar tanto a evolução quanto as fantasias religiosas e mitológicas sobre a criação?
Inclino-me para a tese da origem extraterrena. A mulher viria (isto é pura especulação, claro) de outro planeta.
Venho observando-as durante anos - inclusive casei com uma, para poder estudá-las mais de perto - e julgo ter colecionado provas irrefutáveis de que elas não são deste mundo. Observei que elas não têm os mesmos instintos que nós, e volta e meia são surpreendidas em devaneio, como que captando ordens de outra galáxia, embora disfarcem e digam que só estavam pensando no jantar. Têm uma lógica completamente diferente da nossa. Ultimamente têm tentado dissimular sua peculiaridade, assumindo atitudes masculinas e
fazendo coisas - como dirigir grandes empresas e xingar a mãe do motorista ao lado - impensáveis há alguns anos, o que só aumenta a suspeita de que se trata de uma estratégia para camuflar nossas diferenças, que estavam começando a dar na vista.
Quando comentamos o fato, nos acusam de ser machistas, presos a preconceitos e incapazes de reconhecer seus direitos, ou então roçam a nossa nuca com o nariz, dizendo coisas como “ioink, ioink” que nos deixam arrepiados e sem argumentos.
Claramente combinaram isto. Estão sempre combinando maneiras novas de impedir que se descubra que são alienígenas e têm desígnios próprios para a nossa terra.
É o que fazem, quando vão, todas juntas, ao banheiro, sabendo que não podemos ir atrás para ouvir.
Muitas vezes, mesmo na nossa presença, falam uma linguagem incompreensível que só elas entendem, obviamente um código para transmitir instruções do Planeta Mãe.
E têm seus golpes baixos. Seus truques covardes. Seus olhos laser, claros ou profundamente escuros, suas bocas.
Meu Deus, algumas até sardas no nariz. Seus seios, aqueles mísseis inteligentes. Aquela curva suave da coxa, quando está chegando no quadril, e a Convenção de Genebra não vê isso!
E as armas químicas - perfumes, loções, cremes. São de uma civilização superior, o que podem nossos tacapes contra os seus exércitos de encantos?
Breve dominarão o mundo. Breve saberemos o que elas querem. Se depois de sair este artigo, eu for encontrado morto com sinais de ter sido carinhosamente asfixiado, como um sorriso, minha tese está certa. Se nada me acontecer, sinal de que a tese está certa, mas elas não temem mais o desmascaramento.
O que elas querem, afinal?
Se a mulher realmente veio ao mundo para inspirar o homem a melhorar e ser digno dela, pode ter chegado à conclusão de que falhou, que este velho guerreiro nunca tomará jeito. Continuaremos a ser mulheres com defeito, uma experiência menor num planeta inferior. O que sugere a possibilidade de que, assim como veio, a mulher está pronta a partir, desiludida conosco.
E se for isso que elas conspiram nos banheiros? A retirada? Seríamos abandonados à nossa própria estupidez. Elas levariam as suas filhas e nos deixariam com caras de Ugh.
Posso ver o fim da nossa espécie. Nossos melhores cientistas abandonando tudo e se dedicando a intermináveis testes com a costela, depois de desistir da mulher sintética. Tentando recriar a mágica da criação.
Uma mulher, qualquer mulher, de qualquer jeito! Prometemos que desta vez não as decepcionaremos! Uma mulher! Como é que se faz uma mulher? "

Luís Fernando Veríssimo

Fazer 30 anos


"QUATRO pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.

Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.

Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.

Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.

Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.

Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.

Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.

Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.

Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.

Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.

Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.


Affonso Romano de Sant'Anna

Dores de um amor Romântico


"Sei das besteiras que faço
Das besteiras que falo
De onde vêm os hematomas
Dos medos e dos fracassos
Sei o que penso na insônia
Quando dou uma esmola
Quando digo minha glória
E penso nos vestidos
Sei das noites bebidas
Nos copos sujos e sujos
Conheço cada pedaço da rua
Conheço um pouco de tudo
E sei que digo mentira
Quando digo “Sei de tudo”
Falo demais sobre mim
E quando vejo
Já disse
Algumas verdades .."


Fernanda Young


CAFAJESTAGEM É POESIA

"Era tudo mentira quando eu falava pra você só falar a verdade. Pra ser direto. Não. Mulher gosta de rodeios. Gosta de ser galanteada. E até de ouvir uma mentirinha de vez em quando. Fale que eu sou a mulher mais linda do mundo. Que eu sou mais bonita que a Gisele Bündchen. Fale que vai me amar pra sempre. Jure fidelidade eterna. Diga que eu sou a pessoa mais importante na sua vida. Minta como se estivesse dizendo a verdade.

Eu não gosto tanto assim do escracho como eu dizia que gostava. No fundo – ainda que muito fundo – eu gosto de um pouco de romantismo. Quem fala que não gosta está mentindo. Despiste se quiser só meu corpo. Me mande flores, me leve pra jantar. Finja que gosta de mim mesmo que, no final das contas, só queira me levar pro motel. Finja que é meu, ainda que só por uma noite. Eu gosto desse conto de fadas imaginário que toda mulher cria na cabeça pra colorir a vida um pouco. Eu gosto de ouvir elogios exagerados. De receber mensagens bobas no celular. De receber e-mails no final da tarde e flores no meio do trabalho. Eu gosto de criar fantasias impossíveis. Se eu te chamar pra viajar comigo, não significa que você precisa ir. Minta que vai só pra não estragar a história. O que eu quero mesmo não é nenhuma viagem.

Eu finjo que odeio o seu ciúme mas morro de rir por dentro. Acho lindo quando algum bonitão passa do meu lado e você vigia meu olhar com seus olhos. Acho lindo quando meu celular toca e você, despistadamente, tenta ver quem é. Acho lindo quando a gente sobe no elevador com algum vizinho gato e você me pergunta “quem é esse cara?” depois que ele desce no andar dele. Acho lindo que você não tem ciúmes dos meus amigos feios.

Mas você se tornou tão previsível que perdeu o encanto. Você me conta que acha a vizinha “gostosa”, que acha aquela baranga da televisão “boazuda” e que acha minha amiga “muito boa”. Você conta que “quebrou o pau” na noite anterior. Que bebeu além da conta. Que seus amigos são todos galinhas. Essa sua mania de ser direto acabou com toda a poesia. Você se tornou meu homem-objeto e eu me tornei alguém que eu não sou. Inventei uma mulher-objeto pra te agradar. Invento que eu não gosto de você. Que eu não to nem aí pros seus desejos pelas outras mulheres e finjo que não ouço as coisas desnecessárias que você fala. Invento que eu não gosto do romance e da poesia da coisa.

Mas, quer saber?! Eu gosto da meia-luz. Eu gosto das palavras que só insinuam. Eu gosto do jogo que eu sei jogar. Eu gosto de ser seduzida e não arrastada pelo cabelo. Eu gosto da sua mão segurando a minha e não só dela pelo meu corpo. Eu gosto de me sentir a Marilyn Monroe e não a loira do Tchan. Eu gosto de vinho tinto e não de cerveja na lata. Eu gosto de jazz e não de funk.

Te peço: finja de bom moço. Mande mensagem. Mande flores. Mande no rumo da minha vida. Me pegue no colo. Dance comigo no supermercado. Coloque o meu CD favorito quando eu entrar no seu carro. Me chame de princesa. Me chame de linda. Me chame pra fazer parte da sua vida. Apareça de surpresa. Entre na minha vida sem eu perceber. Minta que eu sou a única mulher que você deseja. Minta que você mataria um dia de trabalho pra ficar à toa comigo em casa. Minta mesmo que eu não acredite em nada disso. E, se você resolver tornar tudo isso realidade, apenas seja. Eu não preciso saber que é verdade."


Brena Braz